Os tintos da Península de Setúbal estão cada vez melhores, não só pela qualidade absoluta que apresentam, mas porque combinam em sim dois factores que garantem sucesso nos mercados: complexidade e, em simultâneo, enorme harmonia, o que os faz apelar a um grande leque de consumidores.
A região da Península de Setúbal tem um nome que chama a atenção para o factor “peninsular”, mas nem só da Península é feita. De Almada e Sesimbra ao Montijo, e deste até Santiago do Cacém — passando, grosso modo, por Seixal, Barreiro, Moita, Setúbal, Alcochete, Palmela, Alcácer do Sal, Grândola e Sines — temos Indicação Geográfica Península de Setúbal, delimitando, assim, toda uma região de clima misto de influência atlântica, sub-tropical, mas com um forte cunho mediterrâneo, condicionado pelos rios Tejo, Sado, e pela Serra da Arrábida. Embora isto signifique uma extensão de terra nada pequena, com uva e vinho a serem produzidos um pouco por toda ela, há três polos que se afirmam por características climáticas e orográficas marcadamente díspares que influenciam de maneira diferente os vinhos que nascem num sítio ou no outro. Por um lado, temos a zona junto à Serra da Arrábida, de solos de maior relevo (com altitudes que variam entre os 100 e os 500 metros), predominantemente argilo-calcários, zona essa que vai desde o Cabo Espichel até aos montes de Palmela, incluindo Sesimbra e Setúbal. Origina, de modo geral, vinhos tintos com maior acidez, frescura e elegância, e menos álcool. Por outro, as famosas “areias de Palmela”, o que na verdade é uma simplificação das planícies de solos arenosos que se estendem sobretudo por este concelho e até ao limite Este do Montijo. Esta é a área com mais vinha plantada, maiores amplitudes térmicas, e onde reina a uva Castelão. Os vinhos tintos que lá nascem costumam ser mais estruturados, potentes e concentrados, pois as uvas apanham mais sol e mais calor e os solos são menos férteis, mais pobres. Apesar de muita gente ficar por aqui quando o assunto são os terroirs da Península de Setúbal, há obviamente um terceiro (sem desprezar os micro-terroirs dispersos), que vai de Tróia para Sul, até ao final de Santiago do Cacém, onde o clima é mais quente e seco, mas onde o Oceano Atlântico tem bastante influência, oferecendo frescura às noites. Aqui já se encontram algumas manchas de xisto. É certo que os dois primeiros são aquilo que podemos considerar como os terroirs mais clássicos da Península de Setúbal, albergando a maioria das também mais clássicas (ou mais antigas) empresas da região — como José Maria da Fonseca, Bacalhôa, Adega de Palmela, Adega de Pegões, Quinta do Piloto, Venâncio da Costa Lima, Horácio Simões ou SIVIPA, entre outros — mas o terceiro é também muito importante: inclui em si produtores mais pequenos, alguns relativamente recentes, a fazer um belo trabalho — falamos de Herdade da Arcebispa, Herdade da Barrosinha, Quinta Brejinho da Costa, Herdade do Cebolal, Monte da Carochinha ou Herdade do Portocarro, entre outros — e é a zona com mais espaço e potencial para brotarem novos projectos.
Uma região em afirmação
A área de vinha total, inscrita na Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal (CVRPS), está neste momento acima dos 7112 hectares e, segundo Henrique Soares, presidente da CVRPS, tem havido, nos últimos anos, um aumento da dimensão média das parcelas. Desta área de vinha, 75% é tinta, com a Castelão a representar quase metade do encepamento da região (mais de 3252 hectares), seguindo-se Syrah (473), Alicante Bouschet (309), Aragonez (289,55), Cabernet Sauvignon (258), Touriga Nacional (223), Trincadeira (163), Merlot (96), Touriga Franca (72), Moscatel Roxo (52,99), entre outras. Na última década, Syrah e Alicante Bouschet têm vindo a ser as tintas mais plantadas — provavelmente por serem uvas que permitem consistência nos factores rendimento/qualidade — bem como Moscatel Roxo, pela sua valorização. Já as Castelão, Aragonez e Trincadeira têm perdido expressão nos encepamentos, talvez por serem castas que, face a outras, não garantem tanta consistência face às variações climáticas anuais.
E se os vinhos da Península de Setúbal têm cada vez mais quota no mercado nacional (20 605 442 litros em 2020 face a 14 042 265 litros em 2016, apenas atrás do Alentejo, em volume), também é verdade que nos últimos dez anos a produção total da região aumentou em 166 278 hectolitros, dos 308 857 em 2011/12 para os 475 135 em 2020/21, com algumas oscilações pelo meio (dados de Abril de 2021, do Instituto da Vinha e do Vinho). No entanto, é bem mais impressionante o aumento da produção DO (Setúbal + Palmela) no mesmo período, tendo passado dos 86 072 hectolitros para os 207 283, incrementada sobretudo pelo crescimento da produção DO Palmela. A evolução da IG Península de Setúbal foi igualmente positiva, em 2020/21 com 228 548 hectolitros, face a 157 851 em 2011/12.
As exportações para o mercado intra-comunitário têm também registado um aumento anual, tanto em volume como em valor, fixando-se em 2020 nos 1 641 363 litros e acima dos 6 milhões de euros, com a Polónia, os Países Baixos e o Luxemburgo à cabeça da lista dos maiores importadores de vinho da Península de Setúbal. Já a exportação para países terceiros, alavancada pelo Brasil (sobretudo), Canadá e Reino Unido, foi de 4 534 976 litros em 2020, o que correspondeu a mais de 12 milhões de euros.
Vinhos que fazem sonhar
Nesta Grande Prova brilharam tintos de vários “cantos” da Península de Setúbal. À data de escrita do texto (durante a vindima) não foi fácil falar com os responsáveis pelos vinhos mais bem pontuados, mas todos acabaram por dedicar algum tempo à causa, o que muito agradecemos. António Saramago tem mais de 50 anos de enologia e é um dos maiores advogados da uva Castelão (todos os vinhos do seu portfólio a incluem), que integra em 100% o tinto António Saramago Superior. “Não é uma casta fácil de trabalhar, mas eu gosto de coisas difíceis. Para sair bem, temos de dar tudo de nós. Na minha opinião, os grandes vinhos da região serão sempre Castelão, é a nossa identidade e não podemos fugir dela!”, afirmou. Este vinho foi feito numa cuba pequena e estagiou em barrica nova, de tosta média, durante 18 meses. Depois, ficou em cuba mais 6 e, em garrafa, mais de 4 anos. Vasco Penha Garcia, coordenador de enologia da Bacalhôa, é da opinião de que se encontra o maior equilíbrio nos solos de transição franco-arenosos. E é precisamente na zona de transição das colinas da Arrábida — com forte influência do mar, maiores amplitudes térmicas durante o período de maturação e exposição Norte — que estão localizadas as vinhas da Quinta da Bacalhôa, zona que o enólogo acredita ser “capaz de produzir vinhos de Cabernet Sauvignon, e Merlot, de classe mundial”. O Quinta da Bacalhôa Cabernet Sauvignon 2016 é, na sua opinião “das melhores colheitas desta marca que existe desde 1979”. Com 10% de Merlot, foi sujeito a macerações longas, fermentativas e pós-fermentativas, e a um estágio de 13 meses em carvalho francês e de 6 em garrafa. Já o Hexagon teve a sua primeira colheita em 2000 e, segundo Domingos Soares Franco, vice-presidente e enólogo da José Maria da Fonseca, “foi um produto de experimentação de castas e da sua longevidade, que demorou 12 anos a apurar”. Domingos contou: “Quis fazer um desafio a mim próprio, um vinho com 8 castas, mas não saiu como eu queria. Deitei uma fora, Castelão, ficaram 7, e mesmo assim não deu. Deitei outra fora, o Aragonez, ficaram 6 e cheguei ao resultado pretendido. É por isso que o vinho se chama Hexagon, e não por sermos a sexta geração da família, como por vezes é interpretado. Este 2015 é já muito diferente dos primeiros, porque nós, enquanto pessoas, também vamos evoluindo com os anos. Hoje é um vinho com menos madeira, menos álcool e mais elegância, que é actualmente o meu conceito de vinhos”. O lote de Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinto Cão, Trincadeira, Syrah e Tannat — provenientes de solos arenosos e calcários, pois Domingos considera que é na mistura dos dois que está o maior equilíbrio — vinificou em lagar de inox e acabou a fermentação em barricas de carvalho, onde ficou em borras finas durante 3 meses, com bâtonnage. O estágio deu-se durante 10 meses em meias pipas novas de carvalho francês.
Já o Quinta do Monte Alegre Homenagem Grande Reserva é feito por André Santos Pereira, e revelou-se uma excelente surpresa. Também fã de Castelão — com uma queda mais recente para a Touriga Nacional, confessou o enólogo — considera que um dos factores mais importantes dos vinhos da casta é, quando muito bons, a grande capacidade de envelhecimento em garrafa. “Este vinho reflecte o nosso propósito de homenagear as vinhas velhas de Castelão que ainda persistem, muitas vezes por mera teimosia de quem as cuida e pelo afecto que se cria ao longo dos anos. É um vinho de uma vinha só, plantada pelo meu avô há cerca de 45 anos, em chão de areia e com produções baixíssimas.”, explicou. Fermentou em lagar de inox “com remontagens manuais durante quase toda a fermentação, recriando a vinificação tradicional, mas com recurso a controlo de temperatura”. Depois da maceração pós-fermentativa, terminou a maloláctica em barricas novas e nelas estagiou por 12 meses. Em garrafa, ficou 24 meses antes de sair para o mercado. Por sua vez, Jaime Quendera, enólogo consultor da Casa Ermelinda Freitas (e da Adega de Pegões), aponta a abundância de horas de sol e a proximidade ao mar como dois trunfos que fazem maravilhas pelos tintos da região, “juntamente com a tradição e ‘saber fazer’ existente na Península de Setúbal, que leva à produção de uvas de grande qualidade e, consequentemente, a vinhos de grande qualidade “. O tinto Dona Ermelinda Grande Reserva “surgiu da ideia de fazer um grande vinho, produzido apenas nos melhores anos, mas sem Castelão, para não conflituar com o outro topo de gama da casa, o Leo d’Honor, que é feito exclusivamente com esta casta”, lembrou Jaime Quendera. Assim, surgiu um lote de Touriga Nacional, Touriga Franca, Aragonez, Trincadeira, Cabernet Sauvignon e Syrah, vinificadas e estagiadas (em barrricas) separadamente. Por último, mas não em último lugar, Luís Mota Capitão, enólogo e cara actual da Herdade do Cebolal, falou-nos do Lufinha 100/10, um tinto com muita personalidade. Devido à localização da Herdade, na zona Sul da região, em Santiago do Cacém, Luís elege não só a Castelão como sua favorita, “a casta-mãe da região com provas dadas nas últimas gerações”, mas também Alicante Bouschet, que diz ser “ideal para a região da ‘Costa Alentejana’, onde encontramos uma maior diversidade de solos e climas, que favorecem as maturações fenólicas”. A vinha que dá origem a este tinto encontra-se a 9 quilómetros da praia de Porto Covo, em solos argilo-calcários e argilo-xistosos proporcionados pela “proximidade da Serra de Santiago do Cacém e da Serra do Cercal”. O nome do vinho, Lufinha 100/10, suscita curiosidade e tem uma explicação bem interessante: “Este vinho vem fazer a ponte entre passado e presente: o 100 representa o centenário do nascimento do meu avô, António Lufinha, e o 10 refere-se aos meus 10 anos de vitivinicultura. O símbolo labiríntico circular, presente no rótulo, é uma alusão à Pedra de Lufinha, testemunho neolítico encontrado na Serra do Caramulo. Associamos esta pedra à parte holística da nossa família e à filosofia do nosso trabalho agrícola”, desenvolveu o enólogo. As castas plantadas pelo avô António — Castelão, Alicante Bouschet, Aragonez e Cabernet Sauvignon — vinificaram em lagares antigos com pisa tradicional, e estagiaram durante 42 meses em barricas de carvalho francês.
Quase 30 tintos da Península de Setúbal foram aqui provados e confrontados, e, a par da tipicidade de cada um e das diferentes origens, há um denominador comum à maioria: são tintos complexos, estruturados e acima de tudo muito harmoniosos e suculentos, com o poder de nos deixar a pedir… “mais tinto, por favor”.
Fonte: Grandes Escolhas